segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O boxe visto como um jogo de xadrez

Reportagem Diário Digital 27-02-2012
Texto: Sandra Gonçalves; Fotos: Rui Telmo Romão

O boxe visto como um jogo de xadrez…de inteligência

Numa viela escura de difícil acesso fomos descobrir um lugar onde se preparam campeões. Não têm medalhas nem registos no livro dos recordes do Guinness, mas o sentimento de união fá-los grandes. Na Academia de Boxe «Os Estrelas», no Monte da Caparica (Almada), cerca de 30 atletas treinam todas as segundas, quartas e sextas-feiras das 19:00 às 21:00 horas.

O projecto foi fundado a 5 de Setembro de 2005 por dois amigos, António Pedro Alves, também conhecido como «O Zêgo», e Luís Pires, com a intenção de promover o desporto e a actividade física entre crianças desfavorecidas dos bairros sociais periféricos.

Pedro «O Zêgo», nome de família de origem africana, é o treinador. Foi campeão nacional de 67 kg e 71 kg e tirou o curso através da Federação Portuguesa de Boxe. Luís Pires é o seccionista e trata da parte mais burocrática. O projecto desta dupla é de cariz social e visa transmitir valores mais elevados aos jovens que vivem em bairros problemáticos. Por outro lado, é uma iniciativa que traduz a verdadeira grandeza da palavra amizade.


Localizado nas instalações do Clube Recreativo «Os Estrelas», em Fonte Santa (Monte da Caparica), a colectividade conheceu os seus tempos áureos com o futebol de salão. Seguiu-se o fustal, mas com o envelhecimento da população local o espaço foi deixado ao abandono, apenas com o bar aberto para as noites de jogos que eram vistos na televisão, entre minis e amendoins. O pavilhão acabou por ser desactivado nos anos 1990 e foi então que os dois amigos decidiram apostar no recinto, um espaço que parecia condenado ao declínio.

Pedro e Luís conhecem-se há mais de duas décadas. Pedro, além de treinador, é também segurança em bares nocturnos. Tem mulher e duas filhas. Há uns anos teve uma «conversa profunda» com o amigo e confessou estar com «medo do futuro». Com poucas habilitações e já fora das competições, não queria continuar a depender do trabalho na noite. E a sua paixão pelo boxe era tanta que seria impensável mantê-la letárgica. Luís prometeu «desenhar um projecto». Já tinha experiência associativa, faz parte inclusivamente do conselho leonino, e juntos foram à procura de espaços para receber um projecto de boxe.

Visitaram locais que mais pareciam galinheiros ou arrecadações para materiais de obras até que souberam de um recinto no Monte da Caparica que estava desactivado. Quando entraram nas instalações, souberam logo que seria ali, apesar de degradado. O espaço tinha sido alugado a um ginásio e quando este fechou os tacos foram deixados levantados e tudo o que estava nas paredes arrancado. Mas não desmoralizaram. Aquilo era o seu sonho e decidiram arriscar. Propuseram à direcção do clube investir «do seu bolso» e dinamizar «Os Estrelas», sempre com a intenção de contribuir para a comunidade, «tornar aquilo numa espécie de sala de estar das pessoas, onde se pudesse praticar desporto, promover galas e outros eventos para mobilizar a população local».

Não tiveram apoio de nenhuma entidade. Luís Pires ironiza quando diz que a única vez que a Câmara Municipal de Almada decidiu «abrir os cordões à bolsa» foi para o ringue. Felizmente, depararam-se com um grande espírito de entreajuda. Um dos atletas é estofador e ajudou a arranjar os cantos do ringue. Outro levou um pneu, daqueles dos camiões TIR, que agora é utilizado para treinos mais específicos.

No início começaram com apenas dois atletas, mas actualmente chegam a ser mais de 30. Há um carácter de resiliência, de ultrapassar obstáculos, é esse o cunho do boxe. «Foi esse o espírito que nos guiou, mesmo nas alturas mais difíceis», diz Luís Pires.

Nessa fase de arranque, Luís foi nomeado secretário-geral e Pedro era o presidente. Conseguiram um protocolo com a Junta de Freguesia da Caparica para que, gratuitamente, os jovens pudessem praticar aulas de boxe educativo, de manutenção ou competitivo. Também fizeram parcerias com o Instituto Piaget e a Escola Superior de Saúde Egas Moniz (localizados nas proximidades do pavilhão) de forma que os alunos das associações beneficiassem de descontos. O projecto social que os dois amigos ambicionavam está parado por falta de apoios, mas, para incentivar novas inscrições, criaram o que chamam de «mini-projecto-social»: cada atleta que trouxer um novo elemento não paga a mensalidade seguinte. Luís e Pedro classificam-no de «Plano B».

Desde 2005, o espaço ganhou outra dinâmica e a Academia de Boxe deixou de ser autónoma. O clube recreativo conseguiu o apoio da autarquia para aliar-se ao programa Alma Sénior, com 36 ginastas inscritos, todos com mais de 60 anos. Cada um paga as quotas consoante as reformas. Pratica-se também karaté-shatokan.

Voltando ao boxe, Luís Pires lamenta que em Portugal haja uma imagem de «demonização» da modalidade, associada à marginalização. O boxe do antigamente, acrescenta Pedro, «estava muito associado à noite e à delinquência». Mas o objectivo destes dois amigos é transmitir aos associados que o que se aprende no rinque não é para levar lá para fora, pelo menos não os socos. «O boxe é um jogo, a ideia não é competir.»

O número de atletas por treino varia. Se há jogos da Selecção Nacional cai para quase 14, mas regra geral anda à volta dos mais de 20. As práticas são mistas. Desde Setembro que «Os Estrelas» contam com Fátima, uma comercial de 46 anos a quem foi diagnosticada fibromialgia (uma síndrome dolorosa caracterizada por dores musculares difusas, fadiga e distúrbios de sono) e que, desde então, tem registado notáveis progressos. Nunca vacila, nem mesmo nos exercícios mais desgastantes. Pode levar mais tempo a concluí-los, mas cumpre a missão. Mesmo quando está visivelmente concentrada, nota-se o prazer que tira daqueles momentos. Em poucos meses, ganhou massa muscular, deixou de tomar medicamentos e o reumatologista que a acompanha está surpreendido com os resultados.

A aspirante a pugilista amadora diz-se agora uma mulher mais tranquila. Chega a casa depois do treino, toma um duche, janta e dorme a noite toda. Está encantada com o grupo. «Aqui não há preconceitos, ninguém liga ao que se tem vestido, nem à silhueta», sublinha, depois de ter já frequentado vários ginásios. E mais. Acrescenta que neste ringue aprende-se humildade e a superar os limites. Fátima dá a cara pela doença que tem. Tem tatuado no ombro direito duas pugilistas e por baixo lê-se «Fibromialgia». É uma lutadora.

Além da prática de boxe, «Os Estrelas» incentivam os atletas a participarem noutras actividades, nomeadamente em provas de atletismo, porque, aliado à preparação física, contribui para o espírito de grupo. Os papéis para as inscrições nos Troféus da Caparica – Prova de Atletismo acabam de entrar nas instalações pela mão de Guilherme Gerald, presidente do clube. São 9 km de corrida e já estão 14 atletas inscritos. Em 2010, os seis que participaram saíram todos medalhados.

Segundo Pedro, esta nova geração de treinadores, na qual ele se inclui, tem uma nova perspectiva. O importante é trabalhar os atletas e só depois é que começam a ser preparados para o combate no ringue. «Só levo um atleta para competição quando sinto que já está totalmente preparado.» São treinos muito exigentes e completos, em que todos os músculos são exercitados. E no ringue, há que ser inteligente. «É como um jogo de xadrez, tem estratégia.» Após o primeiro dia de prática, brinca Luís Pires, acorda-se com a sensação de que se levou uma «valente sova». «Até levar o pé à embraiagem dói.»


Os atletas têm entre 15 e 46 anos, mas a média anda à volta dos 30. Muitos decidem começar a praticar boxe pela condição física, mas depois vão ganhando o «bichinho» da modalidade.

O treino começa rigorosamente às 19:00 horas, depois de os dois amigos terem aberto a porta metálica, ligado as luzes e preparado o material. Quem chega atrasado já sabe o que o espera, uma série de flexões em jeito de castigo.

Primeiro vem o aquecimento, com os atletas a correrem à volta do recinto de tacos de madeira. O ringue está ao fundo da sala. Depois, as articulações dos braços são «oleadas» e fazem-se flexões e carrinhos-de-mão. Os elementos colocam-se às cavalitas uns dos outros e percorrem o espaço. Depois de apearem, formam uma fila e andam de cócoras e simulam saltos de rã. O exercício que se segue consiste em dar socos para o ar – considerado por todos «um dos mais terríveis», e é evidente o esforço nas suas caras. O treino de preparação dura uma hora. É um desporto muito exigente e disciplinador.

Após o aquecimento, entra-se na parte mais específica do treino. Os atletas são divididos em dois grupos, com um a trabalhar ao ritmo de um leitor de CD. Os pugilistas sabem quando mudar de exercício quando o aparelho, entre músicas, emite um som de um gongo. O outro trabalha com um temporizador: três minutos de exercício para um de descanso.

Às 20:00 horas, o leitor de CD começa a tocar «Eye of The Tiger», dos Survivor, banda-sonora do «Rocky III», e o ambiente no recinto torna-se mais competitivo. As mãos começam a receber ligaduras, as luvas de boxe são calçadas e a protecção bocal colocada.

Paulo Figueiredo, de 15 anos, residente no Monte da Caparica e aluno do 8º ano, julga-se um Mike Tyson. Mas desde Setembro, quando voltou a praticar a modalidade, está mais humilde, conta-nos com orgulho o treinador. Sente-se, nas suas palavras, através do seu olhar, que nutre um grande carinho pelo «benjamim» do grupo.

Paulo entra no ringue já todo equipado. Antes de começar o primeiro round diz que é hoje um adolescente mais seguro e que está mais disciplinado. Também emagreceu seis quilos em dois meses. Parece confiante quando começa a desferir os primeiros golpes contra o Pedro, outro dos atletas. Depois entra Agostinho. Inscreveu-se há três meses e só no último é que pode começar a colocar as luvas. Naquela academia é assim. Primeiro preparam-se os atletas e só depois é que pisam o ringue. Neste momento, Pedro luta com o Paulo, que apesar de mais novo, está mais à vontade nos movimentos. Já tinha praticado antes e agora regressou. Conservou a «memória corporal», diz Luís Pires, «o que é essencial nesta modalidade».

O resto do grupo está na fase dos alongamentos. Já passa das 21:20. O treino de hoje foi mais longo. Preparam-se para a foto de família. Estão estourados, mas não conseguem esconder o contentamento.

Entre o grupo de atletas, nota-se que há disparidade social. Alguns vieram de bairros sociais sem qualquer noção de disciplina. Outros estavam até envolvidos em gangues, mas na academia de boxe começaram a ver-se mudanças. Os hábitos da vida de rua foram sendo gradualmente abandonados naquele recinto e houve até quem decidisse retomar os estudos. Dos que optaram pela modalidade pelo exercício físico, um atleta, quando ali chegou, pesava 120 quilos e agora está nos 70.


A curto prazo, «Os Estrelas» pretendem começar a organizar galas de boxe, com cadeiras dispostas frente ao ringue e algumas demonstrações da prática. Estão prometidos bolos e salgadinhos. Quanto a competições, para já só entram nos calendarizados pela federação. Mas, com tanto espírito de determinação e vontade de vencer, prevê-se que alguns, pelo menos os mais novos, cheguem longe. A concretizar-se, Pedro e Luís com os seus «Os Estrelas» terão cumprido a sua missão.

in Diário Digital